REFLEXÕES SOBRE O CAMPO DA SAÚDE.
O processo de produção social do objeto saúde-enfermidade-cuidado, em suas dimensões individual/coletivo, se configura de modo totalizado, complexo e contextualizado, fonte de múltiplos discursos e que extravasa os recortes disciplinares da ciência (ALMEIDA-FILHO, 2006). O reconhecimento dos integrais de saúde-enfermidade-cuidado, segundo uma lógica múltipla e plural, que não se expressa de uma maneira codificada, pode ser, no âmbito da produção do conhecimento, um dos primeiros passos que possibilitará a compreensão de sua complexidade.
Destarte, o trabalho teórico-epistemológico empreendido pela Saúde Coletiva no contexto das sociedades contemporâneas latino-americanas aponta um ‘campo interdisciplinar’ aberto a novos paradigmas (PAIM & ALMEIDA-FILHO, 1998). A partir destes referenciais, poderemos refletir, brevemente, no âmbito praxiológico os conceitos de campo científico (BOURDIEU, 1983) e de paradigma (KUHN, 1970).
Thomas Kuhn desenvolveu o termo paradigma como abordagem crítica histórica, na vertente da teoria da filosofia da ciência, para tentar explicar a estrutura das revoluções científicas, mais especificamente, a construção dos conhecimentos da física. O núcleo dos problemas criados e resolvidos por modelagem do corpus científico de uma determinada comunidade em uma “sólida rede de compromissos ou adesões – conceituais, teóricas, metodológicas e instrumentais” (KUHN, 1970, p. 66) constituiria a fonte principal da metáfora que proporcionaria, ao praticante de uma especialidade amadurecida, as regras que revelariam a natureza do mundo e de sua ciência, permitindo-lhe concentrar-se nos problemas esotéricos definidos por tais regras. Imbricado a este sentido de paradigma, o progresso científico para Kuhn seria mais bem explicado pelo seu conceito de incomensurabilidade. Assim, as teorias não se evoluem gradualmente, por processo de acumulação, mas surgem como resultado de uma reformulação revolucionária da tradição científica anterior. O status de paradigma somente é considerado e validado quando a nova teoria científica alternativa substitui completamente o seu antecessor. Entretanto, dentro do novo paradigma pode haver incorporação de uma parte do vocabulário e dos aparatos conceituais do paradigma tradicional, mas estabelecendo novas relações entre si.
Apesar das polêmicas levantadas por Kuhn eu sua principal obra, “A estrutura das revoluções científicas”, com uma explicação do progresso da ciência fundamentada em uma lógica imanente que confere a ciência o poder de desenvolvimento, é inegável a sua contribuição conceitual de paradigma. Contudo, as condições sociais de produção da verdade científica que são determinadas e estruturadas, simultaneamente, em conflitos epistemológicos e políticos, foram objetos dos estudos sociológicos de Bourdieu (1983).
A constituição de um campo científico para Bourdieu é semelhante ao campo social, com relações de força e monopólios. A produção do conhecimento se dá em um espaço de jogo de uma luta concorrencial pelo monopólio da autoridade científica, definida como capacidade técnica e poder social, uma representação social e do poder simbólico associada a uma determinada disciplina. Ou seja, o campo científico é um lugar de luta política pela dominação científica, se constituindo mediante de estratégias políticas de dominação. Deste modo, os agentes devem engajar-se para impor o valor de seus produtos e de sua própria autoridade na limitação do campo dos problemas, dos métodos e das teorias que são de acordo com seus interesses. As aspirações ou ambições científicas dos agentes de um dado campo científico – as disciplinas – estão na acumulação do capital científico que ocorre no interior da hierarquia social dos campos científicos que orienta as próprias práticas desses agentes em uma luta inseparavelmente científica e política.
Se considerarmos a categoria epistemológica de paradigma como um “instrumento de abstração, uma ‘ferramenta’ auxiliar para o pensamento sistemático da ciência” que possui elementos intraparadigmáticos fundamentados em pressupostos filosóficos, ideológicos e praxiológicos; e os estudos sociológicos do conhecimento de Bourdieu que demonstra a ordem do campo científico estabelecida através da luta pelo monopólio da competência científica mediante estratégias políticas de dominação, como poderemos fundamentar os pressupostos básicos do marco conceitual que trata a saúde coletiva como ‘campo científico interdisciplinar’ aberto a novos paradigmas? Se os campos científicos e seus paradigmas, melhor, se os agentes históricos, condutores e conduzidos por suas práticas científicas, organizados em espaços institucionais da ciência, em ‘comunidades científicas’ com matrizes de pensamento específicos, no que tange a sua linguagem, signos, significados e ferramentas analíticas de pesquisa, como construir um campo científico interdisciplinar? As relações interdisciplinares entre as diversas disciplinas tendem mais ao conflito do que ao diálogo construtivista.
Em concordância com a vertente crítica e pragmática de Almeida Filho (1997) sobre os aspectos lógicos epistemológicos do esquema de Jantsch-Vasconcelos-Bibeau das definições dos correlatos de disciplinaridade (multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade, metadisciplinaridade, transdisciplinaridade) para uma proposta de definição da transdisciplinaridade, a compreensão dos sistemas-sociais-complexos-dinâmicos não se dará, com eficiência e eficácia, a partir do diálogo entre campos disciplinares, mas entre o trânsito dos sujeitos dos discursos em campos do conhecimento diversos. A ciência é uma instituição imaginária que se constitui na prática social e histórica dos diversos sujeitos sociais.
As fronteiras disciplinares já não são mais como foram construídas, de modo delimitado e fechado. A configuração dos fenômenos da vida, como, por exemplo, os integrais de saúde-enfermidade-cuidado são inerentemente complexos, não são capazes de serem apreendidos por campos científicos disciplinares. Entretanto, a sua compreensão deve ser possibilitada por uma lógica múltipla e plural, por ‘operadores transdisciplinares da ciência’ que serão formados não em campos científicos restritos às disciplinas, mas em etapas cíclicas de formação, de ‘treinamento-socialização-enculturação’ em distintos campos do saber.
Todavia, ainda na perspectiva de Bourdieu (1983), a ordem do campo científico se estabelece na luta entre os dominantes e os pretendentes (os novatos), que recorrem a estratégias antagônicas profundamente opostas em sua lógica e no seu princípio. Ainda assim, a ordem científica não se reduz à ciência oficial e no estado incorporado sob a forma de hábitos científicos, sistemas de esquemas geradores de percepção, de apreciação e de ação, produto de uma ação pedagógica específica que guia a escolha dos objetos, a solução dos problemas e a avaliação das soluções. A ordem científica, além disto, contempla o conjunto das instituições ou sistemas de ensino que assegura à ciência oficial a permanência e a consagração, inculcando sistematicamente habitus científicos aos destinatários legítimos da ação pedagógica, mas especificamente, aos novatos do campo da produção do conhecimento científico.
Cabe neste momento nos questionarmos: Tendo em vista a estrutura da ordem do campo científico, como possibilitar uma formação epistêmica transdisciplinar em um sistema de ensino que tradicionalmente foi engendrado para manter a ordem estabelecida com uma ação pedagógica disciplinar, mecanicista e instrumental? Estará a Saúde Coletiva pleiteando instituir um sistema de ensino de etapas cíclicas de formação transdisciplinar, de ‘treinamento-socialização-enculturação em distintos campos do saber que possibilite os novatos do campo da produção científica apreender, através de uma lógica múltipla e plural, a complexidade da produção social-histórica, e também biológica, dos integrais de saúde-enfermidade-cuidado por meio de uma ação pedagógica emancipatória? Será que o campo científico, como bem explicita Bourdieu, permanecerá em luta constante pela acumulação do capital científico, pelo monopólio da competência científica para exercer a dominação ideológica? Ou terá como utopia uma ciência contemporânea engendrada por sujeitos sociais transdisciplinares organizados em comunidades de diálogo hibridizadas e “hibridizadoras”? Qual deverá ser a pauta da definição da hierárquia social dos campos científicos contemporâneos? Tem se fundamentado e pretende se fundamentar na hierarquia dos problemas de uma realidade social concreta injusta e iníqua ou em métodos científicos tradicionais e disciplinares?
Referências bibliográficas:
ALMEIDA-FILHO N. Transdisciplinaridade e Saúde Coletiva. Ciência & Saúde Coletiva. 2(1/2):5-20, 1997.
ALMEIDA-FILHO, N. Complejidad y transdisciplinariedad en el campo de La salud colectiva: evaluación de conceptos y aplicaciones. Salud Colectiva, Buenos Aires, 2(2): 123-146, Mayo - Agosto, 2006
BOURDIEU, P. O campo científico. In: Ortiz, R. org. Pierre Bourdieu. São Paulo, Ática, 1983.Cap.4.p.122-55. (Coletânea Grandes Cientistas Sociais, 39).
PAIM, J. S.; ALMEIDA-FILHO, N. Saúde coletiva: “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? In: Rev. Saúde Pública, 32 (4): 299-316, 1998.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. 9 ed. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2007.
João Marcos dos Santos Santana.
Estudante de Bacharelado Interdisciplinar em Saúde da UFBA.
Estudante de Bacharelado Interdisciplinar em Saúde da UFBA.
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