terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Capítulo 04 - Saúde como Campo de Saberes e Práticas

Capítulo IV
SAÚDE COMO CAMPO DE PRÁTICAS E COMO PARADIGMA

Naomar de Almeida Filho
Jairnilson Paim




Uma rica e intrigante problemática anima o debate atual a propósito das bases epistemológicas do conhecimento sobre os processos saúde-doença-cuidado. Esta problemática implica um série de questões conceituais, dispostas em duas vertentes: Por um lado, é preciso perguntar sobre natureza e propriedades do conceito de Saúde, propriamente enquanto objeto de conhecimento e operador de transformações no mundo e na vida dos sujeitos que nele habitam. Por outro lado, é preciso questionar sentido e lugar das práticas pessoais, institucionais e sociais que, de modo articulado, conformam os espaços onde a saúde se constitui.
A questão fundamental é a seguinte: será a Saúde uma coisa? Mas o que é uma ‘coisa’? Um algo com materialidade, tangível, ponderável? Uma existência sensível (no sentido de capaz de ativar nosso aparato sensorial)? Um ente provido de concretude? (Não esqueçamos que, por muito tempo, falava-se de “entidade mórbida” para designar quadros de doença, problemas de saúde ou fenômenos correlatos).
Podemos tomar como suposto que a Saúde é uma realidade perceptível (por seus efeitos sobre as condições de vida dos sujeitos, através das Ciências Sociais em Saúde), formalizável (no plano lógico-matemático, através da Epidemiologia) e referenciável (pela linguagem). Considerando esse ponto de partida, diversas questões de fundo constituem problemas teóricos a demandar por superação:
Como conceituar a saúde através dos planos de emergência dos fenômenos e processos que a definem concretamente? Será possível defini-la como um recorte único, por meio de uma teoria capaz de transmigrar dos níveis individual-singular aos níveis coletivo-social?
Como absorver a noção intuitiva de saúde como ausência de doença em uma concepção positiva de saúde? E como articular esta incorporação nos distintos planos de emergência da saúde-doença?
Como avançar em direção a uma concepção positiva de saúde, contemplando a historicidade do conceito e a sua aplicabilidade como noção subsidiadora de processos de transformação da situação de saúde? (Almeida Filho, 2000).
Tais perguntas, formuladas a partir de uma reflexão sobre a noção de saúde em diferentes discursos contemporâneos, sugerem debates mais profundos sobre os fundamentos epistemológicos do campo de prática social e técnica reconhecido como Saúde Coletiva. Para uma exploração mais rigorosa e aprofundada de tais questões, por um lado, precisamos considerar os conceitos de campo (campo científico, campo social, campo de práticas etc.) e de paradigma (em especial, dentro do referencial kuhniano de história social das ciências). A partir dessa base conceitual, poderemos avaliar criticamente usos e abusos da categoria ‘paradigma’ nos referenciais pertinentes, a fim de preliminarmente verificar a validade das propostas de conceituação da saúde como campo de práticas e como paradigma científico.

Metáforas de campo nas ciências
Por razões históricas e políticas, a construção teórica (e retórica) da saúde tem sido realizada mediante o abundante recurso à metáfora de campo: A ‘Saúde’ é um campo, o campo da Saúde Coletiva, o campo científico da Saúde etc. Será oportuno revisar circunstâncias e efeitos do uso de metáforas dessa ordem na construção teórica dos objetos da saúde-doença-cuidado.
De um ponto de vista epistemológico, o uso de metáforas na ciência tem sido avaliado, com rigor e consistência, por pelo menos três abordagens complementares entre si:
a) Teoria da referência (Bunge);
b) Teoria interativa da metáfora científica (Max Black);
c) Teoria das "metáforas constitutivas" (Boyd-Kuhn).
No plano operativo da ciência como prática social, e não apenas no plano discursivo do pensamento sobre as ciências, verificam-se três modalidades de emprego das metáforas na ciência, no que se refere a fonte de referência:
a) Metáfora por referência a objeto;
b) Metáfora por referência a método;
c) Metáfora por referência a práxis.
O uso da metáfora por referência a objeto científico tem sido muito comum nas ciências ditas naturais, em especial na Física. Nesse caso, define-se campo como espaço dinâmico delimitado, como, por exemplo, na teoria do campo atômico. Usos correlatos com maior restrição de âmbito conceitual ocorrem nos exemplos de ‘campo gravitacional’, ‘campo eletromagnético’, ‘campo de forças’. Nos discursos sobre os temas da saúde, observamos uma analogia secundária (metáfora oriunda da Física Cinética mas que serve bem à área da Saúde) no uso do conceito de Lalonde de campo (de forças políticas) da Saúde.
O uso da metáfora por referência a método, por sua vez, tem sido muito comum nas ciências ditas culturais, em especial na Antropologia. Nesse caso, define-se campo como espaço ativo de observação, coleta de dados e produção de fatos. Pode-se fazer a distinção ou contraste entre os espaços históricos da pesquisa científica: laboratório, observatório, campo. O laboratório constitui o espaço do controle da pesquisa científica mediante a artificialização total ou parcial do ambiente experimental. O observatório implica distanciamento, tendo o observatório astronômico como paradigma, além da capacidade de monitoramento ou sensoreamento global.
O campo da pesquisa, em franco contraste aos espaços anteriores da ciência, indica imersão, participação (oposto ao distanciamento) e completa ou parcial falta de controle (oposto ao ambiente experimental). Vem daí os conceitos metodológicos instrumentais de trabalho de campo, diário de campo etc. Recentemente, tem-se reavaliado o conceito clássico de campo etnográfico, referido a ambientes distantes e isolados, como as míticas comunidades “selvagens”, preferindo-se falar de campo como “etnopaisagens”. Nos discursos sobre os temas da saúde, observamos uma analogia dessa natureza na designação cada vez mais freqüente do “campo cultural da Saúde”.
O uso da metáfora por referência a práxis, por sua vez, tem sido muito comum nas ciências ditas sociais, em especial na Sociologia de inspiração bourdieuniana. Nesse referencial, define-se campo como espaço social relativamente autônomo, constituído por uma estrutura de redes de relações objetivas, tendo o conceito de habitus (referentes simbólicos) como central. A produção científica se dá num campo de forças sociais que pode ser compreendido como um espaço multidimensional de relações em que os agentes ou grupos de agentes ocupam determinadas posições relativas, em função de diferentes tipos de poder (Samaja, 1994).
Nesse particular, Bourdieu (1983, 1989) contribui com os conceitos de capital simbólico e campo científico, onde operam determinações políticas e científicas para a sua constituição. Para este autor, além do capital econômico, cabe considerar no mundo social o capital cultural, o capital social e o capital simbólico. Este último, fundamental para a análise do campo científico, manifesto como prestígio, reputação, fama etc., seria a fonte estruturante da legitimação das diferentes espécies de capital. O campo científico constitui um campo social como outro qualquer, com relações de força e monopólios, lutas e estratégias, interesses e lucros. Nesta perspectiva, para o estudo de um dado campo científico cumpre
recusar a oposição abstrata entre uma análise imanente ou interna, que caberia mais propriamente à epistemologia e que restituiria a lógica segundo a qual a ciência engendra seus próprios problemas e, uma análise externa, que relacionaria esses problemas às condições de seu aparecimento (Bourdieu, 1983:126).
Em suma, Bourdieu (1989) articula estruturalmente os conceitos de campo econômico, campo político, campo literário, campo religioso, campo científico. Com referência a este último, que nos interessa, considera o campo científico (ou campo disciplinar) como espaço  social do capital científico. Subsidiariamente, poderemos considerar também o conceito de campo de ação tecnológica, definido como espaço de aplicação dos saberes e técnicas gerados pelos campos científicos.
Resulta óbvio e imediato o uso dessa última modalidade de metáfora de campo, juntamente com o seu referencial teórico, para designar o conjunto articulado de instituições, sujeitos e redes da Saúde Coletiva. Nesse sentido, o que chamamos hoje de Saúde Coletiva se estrutura sobre um campo disciplinar: a Epidemiologia; um campo de ação tecnológica: o Planejamento e Gestão em Saúde; e um campo de prática social: a Promoção da Saúde. Esse campo é certamente caudatário de outros campos, como os campos de prática social das Políticas Públicas e da Saúde Ambiental, do campo de ação tecnológica da Clínica, definida enquanto Atenção à Saúde Individual, bem como dos campos disciplinares da Matemática/Estatística e das Ciências Humanas e Sociais.
Examinemos a metáfora de “campo da saúde coletiva”. Sabemos, por princípio, que toda metáfora constitui um objeto lingüístico, um mero significante fora de lugar. Tecnicamente, a metáfora é um ‘tropo’, o que quer dizer um nome em uma retórica. Precisamos pois ir ao nome, refazendo as perguntas: Porque o nome Saúde Coletiva? Porque hoje chamamos a esse campo de Saúde Coletiva? Porque Saúde Coletiva em lugar de “Saúde Pública” e de “Saúde Comunitária”? Porque Saúde Coletiva e não “Saúde das populações”? Porque não “Saúde Social”?
Primeiro, podemos examinar brevemente apenas o motivo que justifica o nome Saúde Coletiva em lugar de “Medicina Social”. A Medicina Social foi um importante movimento social e político do Século XIX; pretendia ser uma “medicina do social”. Baseava-se numa correlação crítica: da “Patologia Social” a uma “Terapêutica Social” (política?). Todavia, os conceitos de social da Medicina Social eram, na época de seu surgimento, pré-científicos. Tomemos Villermé e Guérin, pais fundadores do movimento, com sua “sociologia pré-marxista”; Engels, eminente autodidata, entusiasta da Socio-Biologia darwiniana; ou ainda Virchow e Neumann, orgulhosos positivistas biomédicos.
Qual o problema da Medicina Social em pretender ser uma medicina do social? Realmente, a metáfora de organismo que pode adoecer, curar-se ou falecer não se aplica bem à sociedade. Portanto, de modo simétrico, o campo de ação social em Saúde não se pode orientar pelo conceito de doença. Isso nos faz levantar uma inquietante pergunta: Terá sido a Medicina Social Latinamericana um movimento político-ideológico fundado a partir de uma nostalgia histórico-sanitária?
Mas voltemos à nossa questão, buscando para ela uma resposta provisória: Afinal, porque chamamos a esse campo de Saúde Coletiva, hoje? Eis um argumento encadeado:
Primeiro, porque a realidade de Saúde constitui um campo; segundo, porque esse campo é uma metáfora; terceiro, porque as metáforas agregam poder e identidade; quarto, porque o poder se constrói na prática simbólica; e finalmente, porque a identidade se incorpora no nome.
Antigamente, se pensava que os nomes seriam irrelevantes frente à centralidade do real-concreto das coisas. Emblemático disso é o famoso verso de William Shakespeare:
“Que há em um nome? O que chamamos de rosa, com qualquer outro nome, exalaria o mesmo doce perfume...” (Romeu e Julieta, Ato II, cena II).
Porém, depois de Shakespeare, tivemos Freud e Peirce e Borges, atestando a força do poder simbólico, insinuando que as palavras produzem existência e realidade.  Jorge Luis Borges emblematiza a atualidade dessa questão:
“Se (como afirma o grego no Cratilo) / O nome é arquétipo da coisa / Nas letras de rosa está a rosa / E todo o Nilo na palavra Nilo” (El Golem. El Outro, el mismo, 1964).
Hoje se conhece bem os efeitos simbólicos, políticos e sociais, das palavras. Por isso, o que metaforizamos como campo extrai energia e existência por seu nome: Saúde Coletiva.

Paradigmas nas Ciências
Originário do grego no sentido de mostrar ou manifestar, o termo paradigma denota uma categoria cujo sentido técnico encontra-se razoavelmente estabelecido no campo teórico da filosofia da ciência, particularmente na abordagem de crítica histórica de Thomas Kuhn (1970).
Em A Estrutura das Revoluções Científicas, sua obra mais divulgada, Kuhn (1970) estabelece dois conjuntos de sentidos para o termo. Por um lado, como categoria epistemológica, o paradigma constitui um instrumento de abstração, uma “ferramenta” auxiliar para o pensamento sistemático da ciência. Neste caso, trata-se de uma construção destinada à organização do raciocínio, fonte de construção lógica das explicações, firmando as regras elementares de uma dada sintaxe do pensamento científico e assim tornando-se em matriz para os modelos teóricos. Por outro lado, em um sentido mais amplo, o paradigma constitui uma visão-de-mundo peculiar, própria do campo social científico. Nesse sentido, implica um conjunto de “generalizações simbólicas”, geralmente sob a forma de metáforas, figuras e analogias, configurando-se de certo modo como a sub-cultura de uma dada comunidade científica.
A teoria kuhniana do paradigma científico (e suas variantes) rejeita claramente o sentido do senso-comum para o termo ‘paradigma’, na acepção de padrão de referência ou modelo a ser seguido, como por exemplo ao se dizer que “o sistema de saúde inglês é o paradigma da medicina social”. No nível semântico, a categoria paradigma tem provocado uma grande controvérsia entre os filósofos da ciência (Pinch 1982). Porém, de todo modo, esta concepção fez avançar uma abordagem construtivista da ciência, propondo que a construção do conhecimento científico não se dá em abstrato, isolada no individualismo dos pesquisadores, mas sim que ocorre institucionalmente organizada, no seio de uma cultura, de dentro da linguagem. A ciência pode então ser vista como social e historicamente determinada e só existe no interior do paradigma. No nível da prática, a ciência se realiza no contexto de instituições de produção socialmente organizadas como em qualquer outro campo de prática social histórica (Minayo 1992; Samaja 1994).
Em uma perspectiva autodenominada de pós-kuhniana, Rorty (1979, 1991) propõe uma praxiologia para a compreensão da ciência, frontalmente rejeitando as tentativas de tomar a ciência como uma mera construção ideológica, mais especificamente como um instrumento inevitavelmente a serviço da dominação. Nessa perspectiva, a ciência somente faz sentido se entendida enquanto prática, uma prática social que tem fundações peculiares é bem verdade, mas que se exerce em um processo de diálogo e negociação destinado à produção de um consenso localizado e datado, com base em uma certa solidariedade entre os “atuantes” da comunidade científica (Knorr-Cetina 1981). Avançando na discussão sobre a díade retórica-prática como forma privilegiada de compreensão do que a ciência produz e do que os cientistas fazem e propõem fazer, Bahskar (1997) abre um caminho interessante de argumentação: deve-se tratar a produção científica como ela concretamente se dá, como um modo de produção, avaliado pelos seus processos e seus produtos.
No caso da análise do desenvolvimento científico, paradigmas correspondem às “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Kuhn, 1975:13). Segundo este autor, em determinados momentos de crise poderiam ocorrer rupturas em relação aos pressupostos, conceitos e valores aceitos por uma comunidade científica, favorecendo a emergência de teorias científicas e o desenvolvimento para uma dada disciplina ou campo interdisciplinar.
A ciência se configura como uma prática de construção de modelos, de formulação e solução de problemas num mundo cada vez mais diversificado, plural, em constante mutação. Parte da crise de paradigmas se explica pelo fato de que a prática científica produz, continuadamente, objetos novos que não se enquadram na organização convencional das disciplinas autônomas. Daí a sua superação “por novas modalidades da práxis científica, instaurando formas alternativas de disciplinaridade” (Almeida Filho, 1997:11).
Romper com os paradigmas vigentes não significa recusa pura e simples. Impõe movimentos de crítica, elaboração e superação. Trata-se de uma construção no plano epistemológico ao tempo em que se mobilizam vontades no âmbito da práxis para alimentar o pensamento e a ação. Daí o recurso à noção de transição paradigmática (Santos, 1997) tanto para dar conta das lutas diante de paradigmas distintos e das dimensões social e política na pós-modernidade, bem como para descrever o período em que vivemos.
Segundo Santos (2000), os paradigmas sócio-culturais nascem, desenvolvem-se e morrem. Assim o paradigma da modernidade surgido entre os séculos XVI e XVIII centrava-se em dois pilares: regulação e emancipação. O primeiro foi constituído pelos princípios do Estado (Hobes), do mercado (Locke e Adam Smith) e da comunidade (Rousseau). O segundo seria formado pelas racionalidades weberianas - estético-expressiva (artes e literatura), cognitivo-instrumental (ciência e tecnologia) e moral-prática (ética e direito). Assim, o paradigma sócio-cultural da modernidade, embora ambicioso e revolucionário, enfrenta as contradições entre os dois pilares, gerando promessas não cumpridas e deficits irremediáveis. Desse modo, “o que mais nitidamente caracteriza a condição sócio-cultural deste fim de século é a absorção do pilar da emancipação pelo da regulação” (Santos, 2000:55).
Na análise das revoluções científicas, todavia, a visão kuhniana privilegia as ciências naturais, reconhecendo o caráter pré-paradigmático das ciências sociais. Ou seja,
enquanto, nas ciências naturais, o desenvolvimento do conhecimento tornou possível a formulação de um conjunto de princípios e de teorias sobre a estrutura da matéria que são aceitas sem discussão por toda a comunidade científica, conjunto que Kuhn designa por paradigma, nas ciências sociais não há consenso paradigmático, pelo que o debate tende a atravessar verticalmente todo o conhecimento adquirido (Santos, 2000:67).
O paradigma dominante no campo científico da saúde fundamenta-se em uma série de pressupostos que nos acostumamos a chamar quase pejorativamente de “positivismo”. O positivismo mais radical considera que a realidade é que determina o conhecimento, sendo possível uma abordagem imediata do mundo, das coisas e dos homens (Santos 1989). Além disso, o paradigma do positivismo opera como se todos os entes constituissem mecanismos ou organismos, sistemas com determinações fixas, condicionados pela própria posição dos seus elementos.
Uma versão ingênua do positivismo ainda assola o campo da saúde, principalmente na sua área de aplicação mais individualizada, a clínica médica (Almeida Filho 1997). Perante os processos da saúde-doença-cuidado, por exemplo, a metáfora do corpo como mecanismo (e dos seus órgãos como peças) tem sido efetivamente muito influente na constituição das chamadas ciências básicas da saúde (Castiel 1994, 1997).
Conhecer, entretanto, não é apenas expor o mecanismo do objeto nas suas peças fundamentais, mas sim ser capaz de reencontrar a posição de cada peça, reconstruir o mecanismo e pô-lo em funcionamento. No sentido cartesiano original, o processo do conhecimento opera na direção da síntese, da remontagem do objeto reduzido, na tentativa de restaurar o seu funcionamento.
Nessa etapa, a metáfora do mecanismo (Lévy 1987) representa a forma talvez mais simplista de dar conta do conhecimento enquanto revelação do determinismo do objeto, porém a ciência produz metáforas mais sofisticadas e eficazes para explicar os seus objetos cada vez menos tolerantes a abordagens reducionistas. Por esse motivo, o paradigma mecanicista termina por encontrar uma série de dificuldades institucionais, políticas, históricas e principalmente epistemológicas, logo alcançando limites na sua abordagem. O avanço do conhecimento científico rompe as fronteiras impostas por esta forma de prática científica, que assim perde a posição prestigiosa de fonte de legitimidade baseada em uma verdade racional.
Observa-se cada vez mais uma ampliação do uso do termo paradigma para tratar de qualquer tipo de conhecimento humano e, de um modo ainda mais alargado, para referir-se a práticas sociais de qualquer natureza. Nesse particular, há certo abuso do seu emprego em anos recentes, reduzindo-o, muitas vezes, à idéia de enfoque ou abordagem. Tomemos como exemplo a referência (Dowbor, 1999) de que áreas produtivas dispõem de paradigmas para a sua gestão (taylorismo, fordismo, toyotismo, etc.) enquanto a área social fica oscilando entre burocratismos estatais e privatizações desastradas por lhes faltar paradigmas de gestão correspondentes.
Usos ainda menos rigorosos do termo correspondem a um conjunto de noções, pressupostos e crenças, compartilhados por um determinado segmento de sujeitos sociais, que serve de referencial para a ação. Por isso, precisamos especificar uma acepção mais precisa para o termo paradigma que se adota em epistemologia. Daí a pertinência de revisitar criticamente a obra de Kuhn “buscando reafirmar a investigação científica como uma prática institucional, fundamentalmente baseada em um quadro de referências, representações, valores e atos que denomina de paradigma (Almeida Filho & Paim, 1997).

Efeitos da categoria ‘paradigma’ no campo da Saúde
O termo paradigma foi inicialmente utilizado no campo da saúde para orientar o desenho de planos de estudo que facilitassem a incorporação do ensino das ciências sociais, mediante variáveis psico-sócio-culturais pertinentes (Garcia, 1971). Nesta acepção, o termo paradigma aproxima-se da noção de modelo, enquanto representação simplificada e esquemática da realidade que retém os seus traços mais significativos, a exemplo do paradigma da história natural da doença do Leavell-Clark (1976) ou do campo da saúde (Canada, 1974).
Atualmente, podemos encontrar desde uma equivalência do paradigma ao conceito amplo de campo disciplinar, como na noção de “paradigma da saúde pública” (Afif & Breslow 1994), até um tratamento mais regionalizado de paradigma no sentido da mera atitude perante uma instituição, como por exemplo nos múltiplos usos que o termo vem adquirindo no campo das ciências da gestão (Serva 1992). Em um nível intermediário, no próprio campo da saúde, documentos oficiais de construção doutrinária têm feito uso do termo na conotação de modelo ou abordagem, como por exemplo a noção de “paradigma da atenção primária à saúde” (Nicayiyana et alii 1995).
Outro exemplo no caso da Saúde Pública é a investigação do caráter paradigmático inscrito em uma norma como o Código Sanitário. Após serem estudados os paradigmas tecnológicos das três revoluções industriais, foi identificada a categoria flexibilidade tecnológica como a que melhor traduz o Novo Código Sanitário do Estado de São Paulo, Brasil, correspondente a III Revolução Tecnológica do capitalismo (Iram, 1994). Ao contemplar as relações entre saúde, ambiente e desenvolvimento, alguns autores discutem novos paradigmas científicos (Schwab & Syme, 1997) como correspondentes a interdisciplinaridade e intersetorialidade (Souza, 1998), enquanto outros tratam como paradigma da ética da responsabilidade (Garrafa, 1995).
Outra conotação utilizada para o termo paradigma diz respeito a distintos movimentos ideológicos que se têm apresentado sucessivamente no campo da saúde, tais como o Flexnerismo, a Medicina Preventiva, a Saúde Comunitária e, mais recentemente, a Saúde Coletiva, a “Nova Saúde Pública” ou o movimento da Promoção da Saúde (Deccache, 1997). A partir de uma análise crítica sobre o caráter de modelo, paradigma ou proposta disciplinar, tem-se realizado uma reflexão sobre os marcos teórico-conceituais desenvolvidos no âmbito acadêmico da saúde pública: sanitarista, biomédico, epidemiológico clássico, higienista preventivo, ecologista, epidemiológico social, sociomédico materialismo histórico e sóciomédico neoconservador  (Arredondo, 1993).
No campo da saúde, vários documentos doutrinários têm feito uso do termo na conotação do senso-comum como a noção de “paradigma da atenção primária à saúde”, de “ paradigma da saúde pública”, de “paradigma da administração pública” e de “paradigma da saúde integral”. Nessa mesma linha, tenta-se elaborar uma conceituação de administração pública e identificar paradigmas para um processo de mudança para o Sistema Único de Saúde (Sá, 1993).
De fato, a incorporação de novos paradigmas no desenvolvimento da Saúde Coletiva supõe a crítica teórica permanente dos diversos movimentos ideológicos que têm atravessado o campo social da saúde e a reflexão epistemológica sobre os fundamentos científicos que sustentam, presentemente, as distintas disciplinas que lhe integram. A identificação de novos problemas e a busca de soluções modelares (Kuhn, 1970) representam, portanto, responsabilidades institucionais intransferíveis das instituições de formação, seja no desenho dos planos de estudo, na cooperação técnica e no desenvolvimento científico e tecnológico.
Afirmamos (Paim & Almeida Filho, 1998) que a oportunidade para conceber o complexo “saúde-doença-cuidado” em uma nova perspectiva paradigmática, mediante políticas públicas saudáveis e participação da sociedade nas questões de saúde, condições e estilos de vida, implica a “necessidade de construção de um marco teórico-conceitual capaz de reconfigurar o campo social da saúde, atualizando-o face às evidências de esgotamento do paradigma científico que sustenta as suas práticas”.
Portanto, elementos discursivos e extra-discursivos ligados à constatação de um esgotamento dos paradigmas vigentes, desafiados pela “crise da saúde pública”, encontram-se presentes nos debates contemporâneos sobre a Saúde Pública. No caso dos elementos discursivos, cabe destacar os pressupostos de que o desenvolvimento da saúde supõe a exclusão da doença e que a ciência e a técnica dispõem de um potencial inesgotável para superar a enfermidade. Como elementos extra-discursivos encontram-se as restrições econômicas que comprometem a capacidade do Estado suportar, a longo prazo, o custo crescente da atenção à saúde, particularmente a assistência médico-hospitalar, além do fato de que esta assistência não tem garantido melhor nível de bem-estar.
Estes elementos histórico-concretos não podem ser negligenciados na análise dos novos paradigmas no campo da Saúde Coletiva/Pública já que os campos disciplinares não são preenchidos por entidades abstratas tais como noções, conceitos e modelos. São ocupados, permanentemente por sujeitos históricos organizados em “comunidades científicas” e em “comunidades de prática” e vinculados ao contexto sócio-político mais amplo (Almeida Filho, 1997). São estes sujeitos que na sua prática concreta, dentro e fora das instituições de formação, reconstroem paradigmas e buscam introduzi-los nas respectivas práxis. É nesta perspectiva que se pode considerar a Saúde Coletiva como um campo aberto a novos paradigmas (Paim & Almeida Filho, 1998).

Comentários Finais
O campo da Saúde Pública/Saúde Coletiva não se encontra imune nem à crise de paradigmas nem à transição paradigmática. Enquanto a saúde pública institucionalizada, refém da regulação, enfrenta a sua crise entre mais mercado, mais Estado ou mais comunidade, a Saúde Coletiva apresenta-se como um campo aberto a novos paradigmas numa luta contra-hegemônica a favor da emancipação. A crítica histórico-epistemológica passa pela epidemiologia (Ayres, 1995), possibilitando a busca de alternativas que superem os distintos formatos da disciplina: epidemiologia da constituição, epidemiologia da  exposição e epidemiologia do risco (Ayres, 1997). No âmbito das ciências sociais e do pensamento estratégico, procura-se distinguir a determinação e a constituição, examinando-se o trânsito das práticas da vida cotidiana à conformação dos sujeitos epistêmico, avaliador e público (Testa, 1997).
No caso da contribuição de Ayres, “pode-se entrevê-la no reaproveitamento do conceito kuhniano de paradigma, mas para encontrá-la plena na proposição dos conceitos de projeto antropoemancipador e projeto tecnoconservador (Mendes-Gonçalves, 1995a:17). E ao se considerar a crítica habermasiana ao agir instrumental e ao agir estratégico que informa certas reflexões sobre o planejamento (Gallo et al, 1992; Merhy, 1997) cabe pensar sobre espaços da ação comunicativa pouco explorados,
mas cujas promessas teóricas são mais decisivas: trata-se evidentemente da presença essencial dos consumidores de serviços de saúde, dos educandos, dos receptores de mensagens, dos fruidores das objetivações estéticas, dos necessitados de filosofias (Mendes-Gonçalves, 1995b:23).
Portanto, no âmbito da práxis, a Saúde Coletiva pode participar na transição epistemológica criticando o paradigma dominante e desenhando “os primeiros passos de horizontes emancipatórios novos em que eventualmente se anuncia o paradigma emergente” (Santos, 2000:16). No âmbito da produção de conhecimento, o passo mais importante será certamente re-configurar o objeto ‘saúde’.
Pode-se considerar que o objeto possível da promoção-saúde-enfermidade-cuidado é de alta complexidade e que só se define em sua configuração mais ampla, já que tem facetas e ângulos distintos. Nesse panorama, o olhar de um observador isolado não dá acesso à integralidade do objeto complexo.
Trata-se, enfim, de um objeto por definição diversificado e contextualizado, típico do neo-sistemismo das novas aberturas paradigmáticas. A lógica que deve predominar em tais objetos possíveis, por conseguinte, seria múltipla e plural não se expressando de maneira codificada, mas possível de ser reconhecida por seus efeitos (Almeida Filho & Paim, 1999).

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Uma reflexão sobre o campo da Saúde Coletiva


Na sociedade contemporânea a ciência se configura como uma prática de construção de modelos, de formulação e solução de problemas num mundo cada vez mais diversificado, plural, em constante mutação (Almeida Filho, 1997).

Evidenciando um conflito de interesses no campo das ciências, assim como no campo da saúde publica, onde a capacidade contínua de produção de novos objetos pela ciência conflita com os já estabelecidos tradicionalmente em cada campo. Quando uma nova condição discursiva que vem redefinindo o campo de produção de conhecimentos e das práticas da saúde coletiva. Quando a utopia aspirada é a superação da crise, onde uma oportunidade para efetivamente se incorporar o complexopromoçãosaúdedoençacuidadoem uma nova perspectiva paradigmática, mediante políticas públicas saudáveis e a participação mais efetiva da sociedade nas questões de saúde. Tendo uma visão de mundo não homogênea, e não mercantilista da saúde,  onde a saúde pública enfrenta sua crise escolhendo entre mais mercado, mais Estado ou mais comunidade, (Paim, Almeida Filho, 2000).
Mediante reflexão é possível considerar:

·         Qual o papel da saúde coletiva na contemporaneidade?
·         Como o conhecimento científico no campo da saúde coletiva é influenciado?
·         Nossas políticas públicas de saúde, nossos agentes sociais? Como estão articulados numa perspectiva transdisciplinar, da eficiência, da valorização social, mediante a produção de novos saberes e novos objetos da saúde?

Refletindo sobre a teoria de Kuhn, onde fica evidenciado que o conhecimento científico não cresce de modo acumulativo e contínuo, sendo portanto descontínuo, operando por saltos qualitativos, e ocorrendo nos períodos de desenvolvimento científico, onde são questionados e postos em causa, os princípios os conceitos básicos e as metodologias que até então determinam toda prática científica, sendo o conjunto de todos esses princípios, que segundo o autor constituem o paradigma. Ainda segundo Kuhn, o processo de substituição de um paradigma revela-se numa relação de força. Por conseguinte, evidenciando as causas dessa imposição, saindo do círculo das condições teóricas e dos mecanismos internos de validação e procurá-los num vasto panorama de fatores sociológicos e psicológicos. Evidenciando as relações de autoridade (científica) e de dependência.     

Por outro lado, Bourdieu, admite que exista no campo científico relações de força, na produção e reprodução do conhecimento. Considera que o espaço de produção da ciência, o campo científico, é um campo como outro qualquer, cheio de relações de força, disputas e estratégias que visam beneficiar os interesses específicos dos participantes de determinado campo científico, estando em jogo, especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade cientifica definida como capacidade técnica e poder social.


Referências:

ALMEIDA,Filho N. Transdisciplinaridade e Saúde Coletiva. Ciência & Saúde Coletiva. 2(1/2):5-20, 1997.
BOURDIEU, P. O campo científico. In: Ortiz, R. org. Pierre Bourdieu. São Paulo, Ática, 1983.Cap.4.p.122-55. (Coletânea Grandes Cientistas Sociais, 39).
PAIM, J. S.; ALMEIDA,Filho, N. Saúde coletiva: “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? In: Rev. Saúde Pública, 32 (4): 299-316, 1998.


Ninete Alves
Bacharelado Interdisciplinar em Saúde/UFBA